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VIDA E PALAVRA

por Daniel Moura

  • Daniel Moura

Rasgo dentro de mim

meu coração machucado

e abro meu peito

ao despertar do amanhã.

Todas as feridas que me doem

terão a sangria das enchentes

e os meus olhos, soltos,

poderão enxergar mais longe,

mais nítidos,

o horizonte que me espera.

Arranco de mim,

como se arrancam as pragas

- braço forte, vontade feroz -,

todo o incômodo do ter,

para acordar livre

das amarras que me prendem

ao chão das certezas,

diluindo aos poucos

o pesadelo do ontem,

do absurdo, do que passa.

Mergulho de corpo inteiro

no infinito do sentir

e experimento o vôo errante

no imprevisível, no inusitado.

Aí, então, começará o sonho.

Aí, então, eu já serei o sonho. . .

- Não precisarei mais sonhar.


Daniel Dezembro/86

  • Daniel Moura

Cai o martelo

em madeira e prego

e prega a alma

na esperança morta

de ganhar o pão

por um só dia.

A cada dia

o suor escorre

pelo rosto afora

e lembra a casa

a fome

o frio

o filho

e só se angustia.

A marmita chega fria

tão vazia

dos anseios da manhã

e o angu não desce

o feijão carece

e a dor esquece

que a vontade é vã.

Quando a tarde vem vermelha

já é tarde em rubro rosto

e ao sol posto

encosta o corpo

na ilusão

encontra o copo

e vai cantar o seu lamento.

Vem o filho e faz presença

no seu colo tão cansado

e a mulher como o sonhar

acaricia o seu amado

e o coitado não aguenta

e se arrebenta

de chorar.

O carinho lá por dentro

já não pode saciar.

E ao deitar sem sono e só

lembra o vale, o armazém,

a conta

o leite

o pouco pão.

E sonha

com fantasmas e com bruxos.

E acorda

chorando aos pés do seu patrão.

Acabou.

Serás agora o que quiserem

que tu sejas.


Daniel

  • Daniel Moura

Você me olha, filhinho,

e sente pena, eu sei.

Esta coroa que fere minha fronte

perturba você.

Ela faz brotar gotas de sangue

que descem pelo meu rosto

e caem dentro do seu coração...

Você fica penalizado, não é?,

como se sentisse a minha dor.

Os meus olhos tristes,

cheios de uma amargura mortal,

profundos e significativos,

dão-lhe a impressão

de que estou a lhe vigiar

e a pedir verdade

e a pedir amor...

Quantas vezes o meu semblante

sofrido e angustiado

fez você chorar!

E ficou só nisso, não foi?

Quantas vezes, filhinho,

minha tristeza passei pra você,

para que sentisse coisas mais

que simplesmente pena

da minha Paixão.

Mas você não entende...

Você não entendeu nada!

Saiba, filhinho,

que eu também,

e você nem imagina o quanto!,

eu também fico muito triste

quando vejo você e seus irmãozinhos

se maltratarem,

fazendo de degraus uns aos outros,

como se não soubessem

que a escada que os traz a mim

é feita, não de seres humanos,

mas de obras e boas ações.

Não se esqueça, meu filho,

que nesta escada humana

eu estou em cada degrau...

E você está pisando em cima de mim.

Eu choro muito, filhinho,

quando você passa por seu irmão

caído na rua

e não se conscientiza desta irmandade,

pela mulher de quem você compra

momentos fúteis e degradantes,

pelo doente

que você não socorre,

pelo amigo que,

o invés de mãos

você lhe dá luvas,

deixando-o só nos momentos difíceis.

Estes espinhos, sim,

doem muito!

Sabe porque, filhinho,

eu choro

e você também?

Porque são novos Cristos

que você crucifica,

sou eu crucificado outra vez

em cada um deles

- uma eterna sexta feira da Paixão...

Você entende agora, filhinho,

porque só você pode apagar

este meu semblante triste,

este meu eterno angustiar na cruz?

Lava o meu rosto.

Tira este sangue dos nossos corações,

Por favor...


Daniel 22/03/1976

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